Cada Vez Mais Cineastas Se Voltam ao Antigo Formato do Começo do Cinema

 

Por Noam Kroll

Artigos | 14 de Março de 2023

 

Durante anos, o formato de tela quadrada – aquele mesmo que possuía o exato tamanho da sua televisão de tubo, e que preenchia toda a extensão do aparelho, sem deixar as tarjas pretas que por certo tempo tanto incomodaram os espectadores – foi dominante no mercado audiovisual como um todo. Até meados da década de 1950, quando outros formatos surgiram (a rigor, com a introdução do cinemascope nas telas gigantes do cinema, que competia justamente com o avanço quase desenfreado da concorrência da TV), o 4:3, ou tamanho 1.33, era um padrão na indústria, e exigia dos cineastas, atores e técnicos em geral, determinados movimentos e ações em cena que eram inversamente proporcionais ao que se mais tarde faria. Chamado de old school – porque era um estilo e estética padrão, quadrado e antiquado mesmo, que não permitia as vantagens que hoje temos -, ele foi amplamente usado em praticamente tudo: de grandes produções para o cinema, até programas de televisão, séries e outros projetos audiovisuais. 

 

Mas mesmo que o cinema fosse se distanciando deste formato com o passar dos anos, a televisão insistiu neste padrão muito, muito tempo depois – o que explique talvez a resistência das pessoas quando, com o advento e popularidade do DVD e Blu-Ray, estas mesmas pessoas tiveram tantos problemas com as tarjas pretas, que justamente, veja só, mantinham o formato correto pelo qual o filme foi rodado (e muitos nem sabiam). Por décadas, os formatos largos, ou widescreen, eram considerados formatos de cinema, enquanto o 4:3/1.33 era sempre visto como o formato de TV. Apenas quando no começo dos anos 2000, as televisões em widescreen, com seu tamanho de 16×9, chegaram ao mercado em massa, essa padronização foi transformada para sempre. Agora, o widescreen era também um modelo para a TV – e não demorou muito para que as emissoras, do mundo inteiro, começassem a produzir seus conteúdos para esta nova configuração. 

 

Isto, é claro, não tornou o 1.33 imediatamente extinto, como também pensaram certas figuras em um passado não muito distante, quando achavam que a TV mataria o rádio e o cinema. Havia muitos sistemas ainda rodando no 1.33 (alguns ainda existem), e nem todos os consumidores migraram imediatamente para o 16×9 – muitos, como já mencionado, resistiam às tarjas pretas, que hoje viraram padrão e nem incomodam mais.  E com o passar dos anos, produtoras, estúdios, emissoras de TV e outros produtores de conteúdo – sem mencionar os próprios fabricantes de câmeras – mergulharam com vontade no HD/16×9, abandonando o 4:3 totalmente, ao ponto de ele virar quase um tabu na indústria. 

 

 

 

Mas algo mudou – vem mudando – no comportamento dessa indústria de uns anos para cá. Estamos vendo um ressurgimento do formato clássico 1.33, com cada vez mais diretores, produtores e afins abraçando essa proporção de tela em suas narrativas, seja como um fator de experimentação, seja porque a história, os personagens, o ritmo e a cadência do projeto assim o pedem. E isto é algo ao qual não víamos em muito, muito tempo. Pessoalmente, sou um fã deste tipo de formato, talvez porque muitos dos filmes que sempre amei (e sempre revejo) foram rodados nesta proporção, criando não só uma empatia e memória afetiva muito forte, mas também por inspirar técnicas de enquadramento poderosas, emocionalmente fortes e esteticamente interessantes. Qualquer que seja o caso, o fato é que sempre me chamou a atenção – e eu planejo rodar minhas próximas produções usando completamente a janela 1.33, que vejo como grande auxílio para se contar as histórias.   

 

E o mais interessante de tudo isso é perceber que não foi apenas o cinema que abraçou com vontade o 1.33, mas também a própria TV, os videoclipes musicais e até o conteúdo para a publicidade. Projetos rodados em digital – cujas câmeras oferecem com o simples toque de um botão você escolher a tela larga – hoje são filmados em tela quadrada. É uma nova revolução que parece não ter fim tão cedo. No entanto, muitos se perguntam qual é a boa da proporção quadrada em 1.33 para se ter tantos adeptos assim? Arrisco abaixo alguns palpites e pormenores para se explicar estas novas escolhas. 

 

 

A Democratização do 2.35

 

Não há a menor dúvida que um dos formatos preferidos pelo cinema hoje em dia é o 2.35 – a proporção de tela larga que ocupa toda a extensão do que você assiste no cinema. É um formato maravilhoso com o seu uso de lentes anamórficas, e certamente irá continuar a ser utilizado por centenas de produções cinematográficas rodadas ao redor do mundo por muitos e muitos anos ainda. Quando o 2.35 (e sua pequena variação, o 2.39) foi introduzido, essa tecnologia era reservada praticamente com exclusividade aos filmes superespetáculos para serem vistos em tela grande, com toda a emoção e encantamento do cinema. Isto deu ao formato um certo ar de je nes sais quoi que até hoje é associado a este tipo de produção, geralmente de orçamentos gigantescos e produção caprichada. Mas ao longo das décadas, ele acabou se tornando mais acessível às massas, graças às tecnologias de ponta da era digital (que usam estas câmeras conseguindo mascarar a proporção em cinemascope), lentes anamórficas mais baratas, e a democratização da produção audiovisual como um todo. E aqui vale um adendo interessante: ao mesmo tempo, é incrível a quantidade de películas e produções pequenas, de baixo orçamento, às vezes claustrofóbicas, rodadas em tela larga. Hoje em dia, quase todas as produções – desde aquelas cujo custo chega aos quase 200 milhões até praticamente às feitas com 20 mil – são filmadas em cinesmacope. De uma certa forma, isto é um dos fatores que levou certos diretores a experimentarem com outros formatos e taamanhos de tela. O 2.35 era utilizado, grosso modo, para se sobressair da manada – mas agora ele mesmo transformou-se na manada. E isto me leva ao meu outro ponto. 

 

O 4:3 Diferencia o Seu Trabalho

 

Mais ou menos durante o mesmo período que o 2.35 tornou-se mais acessível, a mesma coisa aconteceu com a produção cinematográfica/audiovisual como um todo. Graças ao barateamento das câmeras digitais, softwares de edição e finalização gratuitos ou de fácil acesso, o mercado independente foi inundado de produções de baixo e médio orçamento que tornou-se impossível às vezes registrar um mínimo de qualidade ou garantia dela nas produções. Todo mundo com um celular ou laptop pode hoje realizar o que antes era restrito a muito poucos. Ao mesmo tempo em que isso é fantástico, também criou-se um problema grande na hora de separar o joio do trigo. Considere por exemplo a enorme, às vezes próxima do infindável, quantidade de películas que todos os anos chegam aos festivais de cinema do mundo todo (e que acabaram criando nichos específicos e/ou festivais particulares para determinadas produções e assim atender a essa demanda).   

 

Com tanta abundância de conteúdo no mercado, tornou-se muito difícil para os cineastas conseguirem diferenciar seus trabalhos dos outros (a não ser que ele tenha por trás toda uma estrutura de distribuição grande e poderosa que o irá ajudar no marketing e divulgação, mas esta é uma outra história e talvez assunto para um outro post igualmente relevante). Hoje em dia, no entanto, nem sempre ter uma boa história ou valores mínimos de produção são suficientes para se destacar por aí. Estas qualidades podem ter sido boas em meados dos anos 1990, mas no mundo contemporâneo – o qual ainda enfrenta o incessante mercado online, com seus vídeos curtíssimos, falta de atenção e paciência de seus espectadores, e linguagem toda própria -, produções audiovisuais impactantes e que retêm o interesse do público precisam ter muito mais.

 

Portanto, seria esta a razão pela qual tantos diretores e filmmakers estão virando suas lentes para o formato clássico de 1.33 com tela quadrada – e que antes estava quase próximo da extinção? Certamente, só o uso do 1.33 não irá magicamente transformar uma produção, nem lhe dar o destaque que o diretor talvez tanto gostaria, ou mesmo ajudá-lo a entrar em algum festival de cinema de destaque. Mas com certeza representa uma noção de se fazer as coisas por um outro ângulo, de uma maneira diferente. E isto é algo que está na cabeça e na sensibilidade de muitos diretores atualmente, então, por causa disso, não é nenhuma surpresa o interesse levantado pelo 1.33. 

 

Vintage is In

 

Uma outra variável é que o vintage está totalmente na moda atualmente. Um exemplo é como o preço da lata de filme cresceu exponencialmente em 30% nos últimos anos, graças à enorme demanda. E não falo apenas de grandes produções – ou da chamada elite do cinema/audiovisual, que só filma em 35mm ou mesmo em 16mm. Pequenas produções também vêm se utilizando da película de forma crescente e com muita frequência. Além disso, seria proibido dizer sobre a quantidade de softwares disponíveis no mercado oferecendo uma espécie de volta às origens do cinema, emulando com precisão e riqueza de detalhes os grãos da película, os pulos, riscos e sujeiras, os filtros e os LUTs antes presentes no filme cinematográfico que sempre fizeram a delícia do cinéfilo gourmet desde pelo menos as mofadas fitas VHS às quais crescemos assistindo a estes mesmos clássicos produzidos em… tela quadrada 1.33. Mas qualquer que seja a razão – estética, econômica, de impacto emocional ou algo do tipo -, o fato é que o vintage e a nostalgia estão a pleno vapor, e seu efeito certamente é sentido por muitos diretores (alguns, inclusive, tão cinéfilos e apaixonados por cinema quanto o eram nossos antepassados).

 

Não Há Modo Mais Eficaz de Se Capturar um Rosto

 

Mas certamente o que mais encanta diretores e aficcionados pelo 1.33 são os benefícios estéticos dele – em outras palavras, as opções de enquadramento. Eu poderia escrever diversos artigos cobrindo o tópico, ou mesmo gastar linhas e linhas analisando a ideia, mas vou me deter em apenas um motivo pelo qual esta configuração quadrada encanta tanto a todos nós: a captura e enquadramento de um rosto. O sueco Ingmar Bergman (diretor de clássicos do cinema como Morangos Silvestres; O Sétimo Selo e Gritos e Sussurros) foi um dos que melhor soube utilizar o recursos (não apenas pelo fato de somente ele estar disponível em sua época), mas sobretudo, e talvez até principalmente, porque ninguém filmou, e se preocupou, tanto com a expressão facial e suas inúmeras possibilidades dramáticas, quanto Bergman. Dizia ele, a propósito, querer ter feito um filme inteiro apenas se concentrando nos rostos de seus atores (que eram aliás magníficos), para se obter o máximo possível desta expressão estética. Nada como um close bem-feito, bem composto, bem-iluminado e com um ator maravilhoso para incandescer a tela. E certamente nada melhor do que o formato 1.33 para lhe dar toda esta vida. 

 

Filmes são, a rigor, sobre pessoas – e como elas interagem umas com as outras, ou com conflitos, ou com amor. Mas sempre sobre pessoas. O formato 2.35 pode até deter um rosto e suas nuances, mas haverá talvez muito espaço nos cantos da tela para que aquele close tenha o mesmo efeito emocional de um captado em 1.33. Mas outra vez, as escolhas são puramente estéticas e artísticas. Existe algo no 1.33 que nos conecta e nos aproxima dos personagens, e consequentemente da atuação dos atores, de um modo mais natural, e que abre uma passagem muito eficaz para as sutilezas das performances. E há ainda o uso claustrofóbico do 1.33, que pode ser extremamente eficiente para determinadas histórias – mas isto, como mencionei, é um caso para outro artigo e/ou postagem. 

 

Será que o 1.33 irá aumentar nos próximos anos com novas produções? Com certeza. Mas será que ele vai dominar o cinema do século XXI adentrando anos à frente como um formato dominante de mercado? Duvido muito, e certamente não. Ele agora está apenas tendo seu momento, seus 15 minutos de fama. De qualquer forma, é saudável perceber não apenas seu uso em várias produções – grandes ou pequenas – mas principalmente que ele já não é mais tabu, e sim mais uma ferramenta do uso quase infinito da criação audiovisual. A internet também contribuiu para esta elevação de variados formatos e estéticas – quem poderia pensar, por exemplo, cerca de 20 anos atrás, que o formato retrato seria tão utilizado como o é hoje em dia, praticamente criando uma estética absolutamente nova? 

 

Tudo isso foi, e ainda é, revelador para os criadores de conteúdo. Enquanto muitos achavam que precisariam utilizar uma miríade de técnicas para se adequar aos chamados padrões profissionais do mercado, hoje percebemos que isso não mais existe. 

 

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Noam Kroll é um premiado cineasta de Los Angeles, e o criador da butique de produção audiovisual Creative Rebellion.