Cinema do Diretor é Som e Imagem em Perfeita Convergência

por Marcela Liz

Se o cinema é imagem e som, sem a necessidade do diálogo, como pregava o cineasta inglês Alfred Hitchcock (1899 – 1980), ou a mentira 24 quadros por segundo, de acordo com a célebre declaração de Jean Luc Godard, ou ainda, segundo a frase do alemão F. W. Murnau (1888 – 1930), que dizia que o filme ideal não precisa de frases ou diálogos; por sua própria natureza, o cinema deve saber contar uma história completa apenas com imagens, então o cinema em curta-metragem praticado por Emanuel Mendes, um mineiro que se estabeleceu em São Paulo em 1999, segue essas afirmações à risca. Pelo menos, é claro, os dois primeiros, Assis & Aletéia (2002), um conto de amor surrealista inspirado por duas paixões do cineasta, o diretor espanhol Luis Buñuel (1900 – 1983) e o pintor catalão Salvador Dalí (1904 – 1989), e Amarar (2008), também uma história de amor com elementos do fantástico e do extraordinário, sobre uma jovem (Djin Sganzerla, filha do enfant terrible do cinema brasileiro, Rogério Sganzerla), perdida em devaneios, incapaz de distinguir presente, passado e imaginação. Nenhum dos dois filmes contém falas, explicações ou cartelas expositivas que ajudam o espectador a mergulhar no labirinto de suas histórias.

“O que está em jogo não é a ação baseada no diálogo, mas sim os sentimentos e sensações das personagens”, diz Mariana Tavares, do canal Rede Minas, que entrevistou o diretor para o Festival Internacional de Curtas de Belo Horizonte em 2008. “Os filmes não são preto no branco, é preciso que se monte as próprias narrativas na sua cabeça. Onde começa a realidade e onde termina a ficção fica a cargo de cada um. Dessa forma, os filmes respeitam a inteligência do espectador”, continua Mariana. Obviamente isso não significa uma receita pronta para o sucesso ou ao menos uma acolhida mais confortável por parte de quem os assiste. “As pessoas se esqueceram de pensar – estão muito condicionadas por aquilo que veem na TV, na publicidade, as fórmulas prontas, elas querem sair de um filme tendo entendido tudo, sabendo exatamente quem é o mocinho e quem é o vilão. Se precisam pensar um pouco mais, se esforçar para compreender algo, ou mesmo lidar com a ambiguidade (que é uma das coisas que elas têm mais dificuldade), e não conseguem, sentem-se burras, e a reação imediata é rejeitar aquilo que assistiram”.

Assis & Aletéia, o curta de estreia de Mendes, obviamente não fugiu à regra. Rodado em 16mm, em locações em São Paulo e na cidade mineira de Pouso Alegre (que emprestou a pequena estação de trem e a locomotiva como cenários), sobre um rapaz que encontra casualmente uma jovem (cujo rosto nunca vemos) em um vagão de trem, e fica obcecado pelo umbigo dela à mostra, provocou os mais diversos tipos de efeitos em festivais – desde sua primeira exibição no Festival de Gramado em 2002 até vaias, aplausos tímidos ou reações desconcertadas após o término com diversas outras plateias. “Mas é um filme onde o estranho e o belo estão intimamente conectados pelo desejo”, afirma Francisco Costabile, cineasta e amigo de Mendes. “As cenas das mãos dadas com os galhos das árvores ao fundo, ou mesmo a do lençol esvoaçante vista de longe são exemplos disso. A sensação de estranhamento que o filme causa é muito grande, supera a ação dos atores, é uma situação realista de se estar dentro de um trem em um contexto que não queremos acreditar que é verdade, mas sim um sonho”.

Escrito em 1995, por Mendes e seu primo, o psicólogo Christiano Lima, Assis & Aletéia é inspirado pelo curta Um Cão Andaluz (1928), realizado pela dupla Luis Buñuel e Salvador Dalí, e considerado o marco inicial do surrealismo no cinema. A história segue o ponto de partida do filme de Buñuel e Dalí – “ao invés de um olho dilacerado por uma navalha, tivemos um umbigo cortado por um punhal”, conta Christiano. E há ainda uma estranha coincidência em relação a formas circulares, ao umbigo, às rodas do trem, ao próprio andamento da história, que começa e termina no mesmo lugar. Uma obsessão, aliás, do cinema de Buñuel, cuja constância era quase sempre em cima de cenas, situações e temas que se repetiam à exaustão. “Nós estávamos tão apaixonados por Buñuel e Dalí, pelo método de trabalho deles, que chegamos mesmo a copiá-los”, continua Christiano. “Combinamos que, se víssemos alguma coisa inusitada ou diferente na rua, em qualquer lugar, contaríamos imediatamente um para o outro, e partiríamos nossa história daquele ponto. E eu vi: sentado no ônibus, indo para a Faculdade, eu não conseguia parar de olhar para um cara à minha frente obsessivamente encarando o umbigo à mostra de uma moça em pé.”

O resultado foi um curta-metragem curtíssimo, de apenas 8 minutos de duração, que, hoje, Mendes considera mais como um aprendizado, um filme cuja intenção foi melhor do que a realização, mas que, segundo ele, serviu como uma verdadeira escola de cinema. Todo produzido com dinheiro próprio, tendo apenas a FAAP (Faculdade Armando Álvares Penteado), de São Paulo, como apoiadora, com a câmera emprestada de amigos, o negativo vencido há mais de seis meses, e uma série de outras dificuldades, mas que foram superadas pela obstinação de um jovem diretor que, até hoje, parece não ter desertado do constante exercício da provocação e da independência.

“Mas isso tem um custo”, diz Christiano Lima. “O filme foi rejeitado pelas plateias de festivais, diversas pessoas vieram nos perguntar o que diabos queríamos dizer com aquilo, e houve pessoas que chegaram a afirmar que não se tratava de um filme brasileiro – era europeu demais, hermético, muito influenciado por um cinema de fora”. E isso, segundo o próprio diretor Mendes, em um formato onde a experimentação chega quase a ditar as regras, onde se é permitido ousar muito mais do que em um longa-metragem, que possui regras e imposições comerciais claras à sua distribuição e venda. “Houve até quem implicasse, em alguns festivais, que o filme não possuía roteiro simplesmente porque não possuía diálogos. Chega a ser assustador o nível médio de intelecto por parte de algumas pessoas desse meio”. 

Mas o diretor continuou fiel a si mesmo, aos seus princípios e à sua estética com seu trabalho seguinte, Amarar (2008), considerado, por ele próprio, o melhor filme que fez até agora – um trabalho muito mais maduro, sob todos os pontos de vista, aquele no qual Mendes viu-se transformado em um diretor de cinema de verdade, segundo suas próprias palavras. A começar pela duração: 23 minutos, quando o “normal” para este tipo de formato são 15 minutos, e que ainda por cima exige uma dose maior de atenção e percepção por parte do espectador. E onde, segundo o diretor, ele aprendeu a não cometer os erros do filme anterior, mas sim abrir-se à possibilidade de se cometer outros. A ideia surgiu a Mendes depois de contar ao amigo e corroteirista André Campos Mesquita sobre uma imagem que não lhe saía da cabeça: a de uma jovem mulher, perdida em uma praia deserta, com um enorme espelho rachado ao seu lado.

“Na verdade, essa imagem possui uma origem muito mais remota”, conta André. “Certa vez, ele me contou, o Emanuel foi ao Masp (Museu de Arte de São Paulo) e ficou muito impressionado por um quadro (do naturalista Johannees Thermin) que exibia uma mulher triste, com um vaso rachado ao seu lado. Estava ali o cerne do nosso filme”, continua André. Depois de escreverem várias versões – “uma a cada mês, durante seis meses, em um processo de workshop dos mais divertidos, engraçados e enriquecedores, também cheio de dificuldades para se resolver a trama, ao ponto de nos referirmos ao roteiro como “aquele assunto desagradável””, conta André –, a dupla realizou um filme complexo, com muitas entradas e várias camadas de interpretação. Uma história de amor – envolvendo a personagem de Djin Sganzerla, Noemi –, mas também um conto sobre as lembranças de uma mulher madura (Helena Ignez, mãe na vida real de Djin, ex-mulher de Rogério Sganzerla), ou simplesmente a narrativa de uma garotinha com um poder de imaginação extraordinário, ou até mesmo com um trauma de infância dos mais assustadores (a menina foi feita pela estreante-mirim Bruna da Mata).

Filmado em 2005, em película 35mm, também em um esquema completamente independente, sem apoio,incentivo ou recursos, demorou dois anos e meio para ficar pronto. Lançado em festivais em 2008, Amarar dividiu opiniões. “Mesmo que o curta seja um formato de experimentação para jovens cineastas no país, o experimentalismo aqui vai muito além da montagem fragmentada responsável pela cristalização do slogan do filme: “um labirinto de memórias”. Ele está muito mais expresso no jogo que cria com o espectador, no sentido de atingir seu inconsciente; no lúdico da fotografia; na interpretação de seus atores; no sutil e terrível subtexto de sua narrativa – a história de um estupro (e não exatamente aquele mostrado no filme) –; no uso muito adequado da trilha sonora (que utiliza três composições do estoniano Arvo Part) e dos barulhos “estranhos”, criando uma atmosfera de sonho (pesadelo?) raramente vista em curtas-metragens”, analisa o crítico Roberto Gonçalves Júnior.

“Em alguns momentos Amarar parece remeter ao sonho. Em seguida, nos coloca numa perspectiva de visão de futuro, para depois se revelar como visão de passado, memória. E por fim, trauma. A riqueza da história contada por meio de animação estática (que é a apresentação do filme), que revela por zooms que nos aproximam e distanciam do relato o tempo todo, pontuados por uma linda trilha sonora, é perdida por uma conclusão de narrativa por meio de símbolos de uma vida perdida e que se ausenta. Se em determinados momentos os signos do filme imprimem alguma tentativa de riqueza, reforçados pelas presenças de Djin Sganzerla e da histórica Helena Ignez, isso se perde na tentativa pesada do diretor em buscar uma solução para aquela fuga idílica da personagem. O retorno à animação estática no fim só revela tristemente que a proposta se perde quase que por completo”, segundo Thiago Macêdo Correia.

Amarar é enigmático, curta poético, de alma feminina”, diz Mariana Souto, jornalista cobrindo o Festival de Curtas de Belo Horizonte. “Mas de tão misterioso, comunica mais beleza estética do que emocional, ainda que sua trilha sonora denuncie que seu objetivo era também pegar pela emoção; às vezes as notas graves são sentidas como desproporcionais, já que o que se vê na tela inspira e enche os olhos, ainda que não comova – considerando-se que esta era mesmo a intenção”.

Para alguns, esse não parece ter sido o resultado – como bem comprovado pela rejeição ao filme pelo comitê do Festival Internacional de Curtas de Clermont-Ferrand, na França, quando uma de suas organizadoras, e responsável pela seleção dos filmes, sequer deu chance para que ele fosse visto pelos outros membros, porque alegava ela que o filme lhe remetia a um trauma de infância do qual ela preferia esquecer categoricamente. Após uma série de emails trocados entre Mendes e um outro organizador, as tentativas se mostraram infrutíferas, e o filme ficou de fora. “Ainda assim, ele teve uma carreira considerável, foi exibido na Áustria, na Espanha, e alguns outros festivais do Brasil”, diz André. “A maior dificuldade, é claro, foi a longa duração – o que o impediu de entrar na grade de programação da maioria dos festivais, os quais exigem quase sempre filmes até 15 minutos”, completa André.

Ainda nessa seara do fantástico e do extraordinário, Emanuel Mendes escreveu o roteiro do curta O Homem Que… (2011), dirigido por Yuri Tarone, produtor multimídia que, à época, conduzia alguns programas para a MTV em São Paulo. “A ideia inicial era na verdade fazer um documentário sobre a loucura, mas a coisa tomou um outro rumo e resolvemos fazer um filme de ficção cujo tema era a loucura”, diz Tarone. O Homem Que… foi também importante para que Mendes fundasse sua própria produtora, a Sincronia Filmes, um sonho há muito acalentado. E pela qual lançou seu mais recente trabalho no formato – É Quase Verdade, outra vez um média-metragem (com 27 minutos), e outra vez um filme aberto a inúmeras possibilidades.

“A grande diferença agora é que temos diálogos”, brinca André Campos Mesquita, que voltou a se reunir com Mendes. “Mas a estrutura de trabalho, o modus operandi da narrativa, tudo continua a mesma coisa. Inicialmente, joguei a ideia para ele de fazermos um documentário de verdade sobre mendigos de rua, mas ele me devolveu dizendo que achava mais interessante fazer um documentário falso. E um documentário falso não apenas seguindo a cartilha do mandamento desse gênero – câmera na mão; filmagem em digital; em preto e branco etc –, mas um documentário falso ironizando a eterna situação do cinema brasileiro em querer mostrar e divulgar apenas a pobreza, a violência, o Nordeste e todos os clichês do país em festivais mundo afora”, diz André. “E uma situação, inclusive, pela qual ele sempre passou com os filmes anteriores – essa dificuldade de exibir o diferente, o não-clichê. Pois bem, agora entregamos um filme onde a cara do Brasil e do cinema brasileiro estão escancaradas, e, mais ainda, ironizadas. É a pobreza não como cenário para histórias edificantes ou ditas, humanas, mas a pobreza que emerge, te apontando o dedo na cara”.

Muito da incompreensão que cerca uma filmografia em curso como a de Emanuel Mendes – e que, ironicamente, tem ecos com a de seu amigo em longas, Guilherme de Almeida Prado, um dos atores de É Quase Verdade –, muito de sua impopularidade em festivais e mostras, muitos de seus problemas e impasses, se devem a essa imersão em uma época fragmentada e em uma proposta estética que não se deixa apreender com facilidade. Pode-se gostar ou não dessa obra. O que não se pode negar é a sua coerência interna.