SOBRE ENCANTAR O MUNDO

Boas Histórias e Maneiras Cativantes de Contá-las Ainda São o Mais Importante

 

Por Felipe Barcellos

Artigos | 29 de Setembro de 2023

 

Me preocupa como a nova geração de criadores audiovisuais tem se comportado em relação ao meio de trabalho. Muita gente boa deixando de aprender a contar boas histórias por não ter acesso a uma câmera 4K / 60p, com auto-foco a jato e estabilização ou equipamento para editar/finalizar de alto nível. Galera, faz isso não. Não é por aí. Como diria Steve Jobs – o caminho é mais importante do que o objetivo final, para utilizar uma analogia bastante adequada a este artigo. Com o advento das novas tecnologias – que possibilitaram formas infinitas de se contar, editar e distribuir os conteúdos –, muita gente ficou encantada mas ao mesmo tempo refém de comparações, especialmente com grandes produtoras, celebridades ou influencers com acesso maior a essas ferramentas. Mas a grande verdade, minha gente, é que o que realmente interessa é o aspecto humano, a criatividade dos profissionais que consigam imaginar e realizar os mais diferentes e criativos modelos de produção audiovisual.  

 

Criem seus argumentos. Refinem os elementos da história a ser contada. Construam roteiros inteligentes e realizáveis. Escrevam e reescrevam: a excelência jamais virá no primeiro tratamento. A bem da verdade, como a prática sempre nos ensina, o primeiro tratamento nunca será eficiente, bom ou mesmo utilizável. Pode ser até que você jogue tudo fora e recomece do zero – e não há problema nenhum em fazer isso. O fazer cinematográfico, a produção audiovisual como um todo, seja ela o que for que você escolher (roteiro; direção; produção; montagem) requer prática: tentativa e erro, tentativa e erro. É como cozinhar: apenas treinando, fazendo pratos, errando e salgando a comida um dia ou outro, que você aprenderá a temperar suas refeições até que elas estejam no ponto. Não há segredo. A criatividade humana nunca, jamais, será superada por qualquer máquina ou tecnologia, por melhores que elas sejam e se tornem.

 

Curiosamente, há dois exemplos bastante esclarecedores vindos de duas figuras famosas do cinema que sempre foram verdadeiros antagônicos: o franco-suíço Jean-Luc Godard e o americano Steven Spielberg. Duas personalidades com estilos completamente diferentes, modos de se fazer cinema distintos e muito pessoais, mas cada um com uma peculiaridade inerente a este texto: ambos são muito criativos e sempre souberam utilizar os meios disponíveis para passar a sua visão de mundo. Seja Godard, com sua câmera muito móvel, equipamentos leves e não sofisticados, e capaz de revolucionar o cinema com um pequeno aparato – foi assim, por exemplo, que ele rodou boa parte de seu primeiro longa, Acossado (1960), hoje considerado um clássico do cinema mundial e um exemplo importante da criatividade à serviço da história. Seja Spielberg, e seus primeiros filmes, como Encurralado (1971), Louca Escapada (1973), e, mais ainda, Tubarão (1975), com suas dificuldades técnicas e operísticas que obrigaram o então jovem cineasta a buscar outras soluções para assustar e entreter o público com a famosa história do bicho do mar assassino. É claro que talvez não sejamos Godard ou Spielberg, e nem precisemos ser, mas suas histórias e experiências podem ser um sopro de inspiração para muitos de nós (e o cinema e o audiovisual não são justamente para isso?).     

 

 

Filmagem de “Acossado”.

 

Sobre captura de imagens, procurem dominar princípios básicos (e eternos) da boa cinematografia. Pensar em composição (incluindo sombras e cores nesse processo), enquadramentos que já foram exaustivamente testados e que ajudam a história a fluir. Movimentos de câmera que são componentes do storytelling e não enfeites. Já existem muitos virtuoses vazios neste meio que parecem querer apenas se exibir. A simplicidade encanta. Coloque a câmera onde ela deve estar: em frente às pessoas e/ou objetos, e não complique nem sua vida, a de seus técnicos e principalmente a de seus atores/colaboradores. Se não há canhões de luz ou equipamentos sofisticados de iluminação, procure uma janela, filme em um cenário aberto. Câmeras hoje – mesmo a de celulares – são capazes de filmar e capturar quase à luz de velas! Se for o caso de uma obra que tenha diálogos, pense na dinâmica que os envolve. Em como se constrói uma história com apenas uma câmera, exigindo do criador domínio sobre os talentos, sobre o espaço cênico. No caso de um documentário, fique livre para desenvolver seu estilo, mas atenha-se aos princípios que garantirão imagens e depoimentos que muitas vezes serão impossíveis de serem repetidos ou refeitos. Run & gun.

 

E tudo isso pode ser feito com qualquer equipamento que filme em 1080p, a 24 quadros por segundo, nossa velha e boa cadência cinemática, com seu “borrado” e jeitinho que alteram nossa percepção espaço/temporal, que nos jogam no âmago da narrativa proposta. Você não precisa ter as melhores lentes se você sabe os fundamentos técnicos, mesmo quando limitados ao uso de lentes de fotografia ao invés das de cinema, sem correção de abertura e foco inadequado para imagens em movimento. Foco manual é amigo do cineasta. Sempre será. Artesanal e mágico. E o mais importante é fazer este papel de mágico, pois é disto o que se trata o cinema e o audiovisual. Hoje inclusive há inúmeros profissionais e semi-profissionais criando seus próprios conteúdos com equipamentos mínimos, distribuindo-os e vendendo o seu peixe na internet, em redes sociais. 

 

O som, vital, resolvemos com a excelente captura de um velho smartphone ligado a um microfone de lapela de poucos reais ou mesmo um sem fio, que segura a bronca a até 30 metros do receptor de sinal. Sincronizamos depois, basta claquetar com rigor. Manter suas referências de produção sob controle. Lembre-se, é só ter atenção e cuidado. Para editar, temos a suíte DaVinci Resolve 18, poderosa em vídeo, correção e gradação de cor, VFX, SFX, edição de áudio e 100% gratuita, com mais recursos do que Stanley Kubrick teve a vida inteira à sua disposição em suas moviolas e estúdios de finalização. Faça. Realize. Aconteça. 

 

Conte histórias. Exiba. Deixe que as pessoas vejam, seja na sala de casa, na faculdade, no YouTube ou mesmo nas suas redes sociais e mensageiros instantâneos. Mas, na medida do possível, busque a tela grande, projete na parede da comunidade. Fruição coletiva. O poder que o cinema tem de encantar massas e provocar emoções numa audiência numerosa. Câmeras DSLR ou mirrorless de 10 anos atrás, que você despreza, ainda dão muita alegria com o firmware Magic Lantern, gratuito. O celular antiguinho também. Não entra numas de deixar de fazer por perder tempo comparando o que tu tens disponível hoje com o que o coleguinha possui. Não é isso o que é mais importante. É sobre algo mais. É sobre alma e coração. 

 

Vamos encantar o mundo?

 

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Felipe Barcellos é sócio-diretor da agência Schvartz Comunicação. Mora no Rio de Janeiro.