A Estética do Subjetivo

Feliz Ano-Velho Retorna ao Home Video em Cópia Restaurada

 

Por José Geraldo Couto

Novos Trabalhos | 09 de Dezembro de 2019

 

O livro Feliz Ano Velho, de Marcelo Rubens Paiva, publicado em 1982 e tornado um best-seller instantâneo, já se servia de técnicas da narrativa de ficção para contar a história pessoal do autor, tendo como centro dramático o acidente que o tornou tetraplégico aos 20 anos de idade. Tanto que o livro era apresentado como um “romance autobiográfico” e não uma autobiografia em sentido estrito ou um relato de memórias. Realizado cinco anos depois, o filme de Roberto Gervitz inspirado no livro aprofundou a dimensão ficcional ao se desprender de certos dados factuais e acentuar o que havia de subjetivo ou imaginário no relato, ainda que mantendo suas balizas principais e o contexto histórico-político-cultural-comportamental dos acontecimentos. Começou por mudar os nomes dos personagens: ao batizar de Mario (e não Marcelo) seu protagonista, o diretor ganhou desenvoltura para tomar outras liberdades diante do texto original. Efetua-se então uma operação interessante e aparentemente paradoxal: o filme busca ampliar o caráter universal da história que conta ao mergulhar na subjetividade do protagonista-narrador. Ou, dito de outro modo: o filtro da subjetividade faz com que a trajetória singular de Mario se torne mais facilmente compartilhável, mais passível de suscitar identificação emocional por parte dos espectadores em geral, e não apenas dos jovens da geração do personagem, uma vez que todos tivemos um dia 18 ou 20 anos.

 

 

São os temas comuns dessa faixa etária – os sonhos e medos, o impulso libertário e as hesitações, os entusiasmos e as frustrações, as inquietações da libido e as dúvidas quanto ao futuro – que perpassam essa história, ainda que matizados pela experiência biográfica pessoal e intransferível de Mario e balizados pelo contexto histórico muito concreto (retomada do movimento estudantil; luta pelas liberdades democráticas no ocaso da ditadura militar; busca de modos alternativos de comportamento e vida amorosa, etc.). Uma das apostas mais certeiras do filme foi tentar traduzir esteticamente esse predomínio do subjetivo. Dois procedimentos são mais evidentes nesse sentido: a estrutura descontínua, não-linear, da narração, que de certa forma espelha os movimentos do pensamento e da memória; e a exuberante e ousada (e não-realista) manipulação das cores e da iluminação. Cada sequência, cada momento, tem o predomínio de uma cor e de uma luz determinadas, enfatizando sua tonalidade emocional. Não vemos “os fatos tal como aconteceram”, mas como são vistos, lembrados e sentidos pelo protagonista – ou antes, como os realizadores – o diretor Roberto Gervitz, o diretor de fotografia César Charlone, o diretor de arte Clovis Bueno – buscam se aproximar da subjetividade de Mario.

 

Esses procedimentos, aliados ao empenho vigoroso de um elenco que mescla eficazmente jovens (Marcos Breda, Malu Mader) e veteranos (Isabel Ribeiro, Marco Nanini), acabam por criar curiosamente um frescor que provém do artifício, uma verdade que se distancia do realismo convencional, compensando com folga os eventuais excessos e deslizes (por exemplo, uma certa redundância dos discursos). 

 

Passados mais de trinta anos desde que foi lançado, Feliz Ano Velho não apenas manteve intactos seu viço e sua universalidade como adquiriu um encanto extra de “filme de época”, expondo uma leitura da história do país que talvez traga as marcas do período em que foi realizado (1986/87), uma certa candura esperançosa, ou esperança cândida, que tinha a ver com o clima de reconstrução da vida democrática depois de duas décadas de ditadura. Rever esse sentimento de renascimento – do protagonista, do país – três décadas depois, num novo momento de aflição quanto aos rumos da nossa sociedade, é um exercício ao mesmo tempo doce e doloroso de autorreflexão. Tudo somado, Feliz Ano Velho segue um filme vivo e inquieto, com todas as arestas e feridas abertas que permeiam a vida do personagem retratado e do país que o cerca.

 

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José Geraldo Couto é crítico de cinema, jornalista e tradutor. Escreve para os principais veículos de comunicação do Brasil.